segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Pequeno conto do destino III

João foi nascido para lutar.
Quando menino, vivia de espada em riste,
fazia desenho nos ares e batalhava contra o vento.
Depois de crescido, encarou lutas mais duras,
guerrilhava pela crença absoluta numa ideologia.
Foi quando outro menino apareceu e, de assalto, robou-lhe a luta.
João foi herói na vida.
Mas morreu da maneira mais ordinária: virou estatística.

domingo, 15 de agosto de 2010

Aventurança


Essa é a história de uma menina que tinha pela vida um amor passarinheiro. Sonhava ser trapezista, mas na falta de espaço na mala do mágico, escondeu-se no baú de um caminhão ao invés de fugir com o circo. Saltou na cidade seguinte e começou a fazer peraltices no posto de gasolina. Deu-se o caso que nunca mais na vida a menina parou de dançar, cantar, nem de andar pelas ruas das cidades. Do sol fez lona e da gente da beira das estradas, plateia. Foram dias e dias percorrendo os caminhos desse mundão, sempre com uma graça debaixo da manga, até quando quis mudar o rumo.
Numa atípica tarde chuvosa de uma cidade que não se sabe o nome, a menina decidiu parar. Os anos contavam o número de 22. Tinha os pés cansados da caminhada e um coração batendo de solidão. Viu do chão molhado brotar flor e pensou em fazer morada, com esperança de que também brotasse calma ao seu coração desacertado. Mas teve jeito não, ela só sabia-se liberdade. A vida todinha da menina foi assim, um pouco de loucura e um tantão de tanto de aventurança.

domingo, 8 de agosto de 2010

Do que basta



Hoje eu quero voltar para dentro,
preciso apagar as arestas do que em mim transborda
para ficar inteira,
não mais excessos.
Quero ser de um tamanho que eu me alcance,
de maneira que baste o que tenho,
o que sou.
Nada além.

sábado, 7 de agosto de 2010

Encontro de almas


"Que apesar dos pesares, conserva o bom-humor,
caça nuvens nos ares, crê no bem e no amor."

- Carlos Drummond de Andrade -



De repente, Joyce cresceu. Começou a namorar um homem dez anos mais velho que ela e, aos 22, fez festa de casamento e mudou de casa, levando o marido e uma mala repleta de certezas. Para marcar a passagem, reuniu os amigos numa festa linda. Fui tomada de assalto, mas achei aquilo tudo de uma maluquice admirável. Parecia que o mundo começava naquele dia, e começava mesmo. No momento dos votos, que ela mesma escreveu, os convidados ouviram o segredo: "Porque aos 22 ou aos 32, amadurecemos sempre". Era surpreendente, ela não tinha medo. Quando cheguei em casa aquela noite, guardei mais um desejo na minha caixinha secreta, o de jamais me amedrontar diante dos desafios. Sou muito orgulhosa de perceber como sabiamente ela constrói um futuro de sonhos compartilhados. Agora, quero deixar como herança para Joyce todos os desejos guardados na caixa. É a relíquia de uma vida inteira, cuidadosamente bordada com os fios das angústias e alegrias que senti ao longo da estrada. Coisa para gente grande e muita, feito Joyce. Matéria de adultice. Junto com a caixa, deixo uma dedicatória com votos de uma velhice adorável, com muitas rugas, pois são as rugas a memória do corpo, e o mais profundo desejo de que perdure o encontro de almas que eu vi oficializar.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Mãos dadas


Se você vier viver comigo, roubarei esse seu sorriso solar e a mania que ele tem de também me fazer sorrir. Exigirei indicações de livros e passarei tardes inteiras lendo com a cabeça recostada na sua barriga, usando e abusando das suas mãos fazedoras de cafunés. Se você vier viver comigo, usurparei o calor dos seus pés durante a noite e só aceitarei dormir se tiver minhas pernas perdidas nas suas. Aproveitarei a oportunidade para brincar de fazer mapas com as pintinhas do seu corpo. Se você vier viver comigo, decretaremos o feriado mundial dos amantes e os dias serão de uma alegria de dar gosto. Passaremos agostos, setembros, outubros, anos inteiros viajando pelos roteiros mais esquisitos. Brigaremos, porque ninguém é de ferro, mas em noites de sábado, cairemos na farra! Em troca, ofereço essa que me tornei. Essa aqui, incompleta, que desistiu de procurar sentido nas coisas e aprendeu demais na desistência. Não ofereço somente alegrias, porque estaria mentindo. Também não farei promessas. Só segura na minha mão, pequeno. Segura na minha mão e vai, quero que leves a menina de cabelos em tranças amarradas com laço de fita e que, de mãos dadas, a gente busque ser feliz.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Entre aspas


Sempre que se entregava, era devolvida. Um caco a mais na coleção de ruínas. Cansada de viver entre aspas, decidiu não mais acreditar nas historinhas de faz-de-conta e esquecer de vez o “foram felizes para sempre” do final. Passou a desconfiar dos “eternamente” que foi encontrando pelo caminho e aproveitou para jogar fora todos os advérbios, uma forma de poupar tempo. De repente, ela, que sempre gostou de vírgulas, quis ser ponto. Nunca mais reticências. Assim mesmo, sem adjuntos ou subordinações. Sujeito simples da oração principal. Até quando conseguir entender o que vai dentro do próprio coração. Até quando for menos suscetível a adjetivos, ainda que nunca.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Pequeno conto do destino II

Quando completou 18 anos, ganhou um pincel e decidiu ser escritora.
Começou a desenhar na pele desejos futuros, fazendo do próprio corpo manifestação da sua arte. Foi se sujando ao longo dos anos.
Nunca recebeu nada pelas letras, mas jamais deixou de escrever.
Escritora semi-nova.
As linhas foram a maneira que ela encontrou de aplacar uma culpa que não sabia ao certo de onde vinha.
Os escritos eram a sina do corpo que ama.