segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Amorizade


Camila diz: amiga, tu não estás mais falando direito comigo.
por que, hein?

Duda diz: é porque quase nunca eu estou aqui. agora, mesmo, estava lendo uma tese.

Camila diz: tou órfã de tu.

Duda diz: eu deveria dizer que estou órfã de tu, também, mas estou órfã é de mim, mesmo.

Camila diz: mas tu fica bem sem tu.
eu, não. =(

*Porque nossa amizade é daquelas coisas que não têm fim. E com ou sem ausências, de um jeito ou de outro, é de mãos dadas que a gente vai!

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Dos presentes...


A Dona Mel (http://jardimdemell.blogspot.com/), a flor mais linda de um jardim super colorido, presenteou-me com essa surpresa tão encantadora. Para continuar a brincadeira, chegou a minha hora de indicar leituras e presentar pessoas queridas. Lá vai minha listinha de casas que merecem ser visitadas.

1. Para a menina Cris, que me encontrou justamente quando eu estava precisando ser encontrada. As palavras mais doces, os carinhos mais bonitos, você encontra aqui: http://blog-chao-de-estrelas.blogspot.com/

2. Para a menina-borboleta, dona do sorriso mais bonito do mundo, que chegou e não vai mais embora, seja como for. Aqui, tem até samba, se você quiser: http://www.nelmioparadiso.blogspot.com/

3. Para o amigo poeta, aquele tão jovem, mas que já tem tanto talento no trato com as palavras. Aqui, você encontra engenharia das boas: http://www.laminalucida.blogspot.com/

4. Para Ziris, outra trabalhadora das letras, mais uma que me encontrou e que eu nunca mais quero que desencontre. Palavras para todos os dias, sempre: http://ziris-umtoquedevida.blogspot.com/

5. Por fim, devolvo o mimo, com o mais profundo desejo de que perdure esse encontro de almas promovido pelas letras, pela internet e, principalmente, pela vida: http://jardimdemell.blogspot.com/


Que seja tudo sempre doce!

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Eram os dois


Acontece nas melhores famílias. De repente, ela virou-se e não reconheceu o homem que dormia no lado esquerdo da cama. Nunca havia se perguntado, aliás, o porquê de tantos anos dormindo do lado direito. Não lembrava em que momento ficaram instituídas as posições. Não era a barriga preponderante, nem a toalha molhada em cima da cama. Não era o futebol aos domingos, nem as latinhas de cerveja espalhadas pela casa. Não era a mania de dirigir perigosamente, nem a indelicadeza de jamais abrir a porta do carro. Ela gostava do sexo, do cheiro, do papo. Mesmo quando precisava fingir orgasmo, mesmo quando a loção pós-barba ficava espalhada na pia do banheiro, mesmo quando não entendia direito as oscilações da bolsa. O problema todo estava no lado esquerdo. Não no lado esquerdo em si, pois nunca se importou com posições, mas na repetição, na rotina, na programação massante dos dias. O problema estava nos anos, no que ela fez dos anos, nos momentos em que foram determinados os lados da cama. Eram os lados, as divisões, a delimitação de papéis. Era ela. Era ele. Eram os dois.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Braços estirados


"Livrai-me de tudo que me trava o riso. Amém."

- Cris Carvalho -


As coisas mudaram no dia que ela decidiu se entregar. Não lembra em que instante isso aconteceu, mas desejou ficar diferente, com menos rancor, menos mágoa, menos peso. Parou de procurar quem deixou de pagar a conta e esqueceu todos os devedores pelo caminho. Na bagagem, só o estritamente necessário. Eliminando sobras, aprendeu a aparar as arestas. Dos pertences, restou apenas o desperdício de si, a entrega, o arrebatamento. Pegou nos ares a estrela caída do céu, colocou no cabelo, como um iluminado enfeite, e foi. Peito aberto. Braços estirados. A vida, agora, era qualquer coisa pura, qualquer coisa livre, qualquer coisa genuína. Nada é pesado demais para quem tem asas.


sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Para Clara



Dói. Mas há que se entender os rumos da vida.

Clara passava dias a depositar impossibilidades numa branca folha de papel. Criava castelos, montanhas e fadas com giz-de-cêra. Dos desenhos, guardava as cores. Céu, sol e flores amarelas, amar-ela. De repente, foi acometida por uma doença de nome estranho: leucemia. Continuou a colorir. Quando as coisas pioraram e o corpo começou a enfraquecer, a menina passou a entender sobre a dor. Conviveu com ela por quase dois anos. Era duro, mas acostumou. E da dor, tirou o alívio. Na bagagem que levou para o hospital, um punhado de estrelas, uma porção de esperança e muitos potes de vida. Vida por toda parte. Sempre. Sempre. Sempre. É por isso que não vou falar da morte. Nem da dela, nem da minha, que também morri um pouco quando ela partiu. Não vou falar da morte porque a morte é nada perto da inocência e do riso lindo que me vêm à mente cada vez que fecho os olhos.

Menina-Luz!


*Vai fazer um mês que Clarinha foi lá pra cima alumiar a vida da gente. Sei que papai do céu fez isso porque ela é uma menina especial demais para viver as chatices que a adultice traz.


domingo, 5 de setembro de 2010

Das grandezas...



Se ela fosse mar, seria sereia.
Se ela fosse ar, seria pássaro.
Se ela fosse cor, seria vermelho.
Se ela fosse flor, seria lótus.
Se ela fosse música, seria sol.
Mas não é.
Não seria.
Ela é grande demais para ser uma coisa só.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Pequeno conto do destino III

João foi nascido para lutar.
Quando menino, vivia de espada em riste,
fazia desenho nos ares e batalhava contra o vento.
Depois de crescido, encarou lutas mais duras,
guerrilhava pela crença absoluta numa ideologia.
Foi quando outro menino apareceu e, de assalto, robou-lhe a luta.
João foi herói na vida.
Mas morreu da maneira mais ordinária: virou estatística.

domingo, 15 de agosto de 2010

Aventurança


Essa é a história de uma menina que tinha pela vida um amor passarinheiro. Sonhava ser trapezista, mas na falta de espaço na mala do mágico, escondeu-se no baú de um caminhão ao invés de fugir com o circo. Saltou na cidade seguinte e começou a fazer peraltices no posto de gasolina. Deu-se o caso que nunca mais na vida a menina parou de dançar, cantar, nem de andar pelas ruas das cidades. Do sol fez lona e da gente da beira das estradas, plateia. Foram dias e dias percorrendo os caminhos desse mundão, sempre com uma graça debaixo da manga, até quando quis mudar o rumo.
Numa atípica tarde chuvosa de uma cidade que não se sabe o nome, a menina decidiu parar. Os anos contavam o número de 22. Tinha os pés cansados da caminhada e um coração batendo de solidão. Viu do chão molhado brotar flor e pensou em fazer morada, com esperança de que também brotasse calma ao seu coração desacertado. Mas teve jeito não, ela só sabia-se liberdade. A vida todinha da menina foi assim, um pouco de loucura e um tantão de tanto de aventurança.

domingo, 8 de agosto de 2010

Do que basta



Hoje eu quero voltar para dentro,
preciso apagar as arestas do que em mim transborda
para ficar inteira,
não mais excessos.
Quero ser de um tamanho que eu me alcance,
de maneira que baste o que tenho,
o que sou.
Nada além.

sábado, 7 de agosto de 2010

Encontro de almas


"Que apesar dos pesares, conserva o bom-humor,
caça nuvens nos ares, crê no bem e no amor."

- Carlos Drummond de Andrade -



De repente, Joyce cresceu. Começou a namorar um homem dez anos mais velho que ela e, aos 22, fez festa de casamento e mudou de casa, levando o marido e uma mala repleta de certezas. Para marcar a passagem, reuniu os amigos numa festa linda. Fui tomada de assalto, mas achei aquilo tudo de uma maluquice admirável. Parecia que o mundo começava naquele dia, e começava mesmo. No momento dos votos, que ela mesma escreveu, os convidados ouviram o segredo: "Porque aos 22 ou aos 32, amadurecemos sempre". Era surpreendente, ela não tinha medo. Quando cheguei em casa aquela noite, guardei mais um desejo na minha caixinha secreta, o de jamais me amedrontar diante dos desafios. Sou muito orgulhosa de perceber como sabiamente ela constrói um futuro de sonhos compartilhados. Agora, quero deixar como herança para Joyce todos os desejos guardados na caixa. É a relíquia de uma vida inteira, cuidadosamente bordada com os fios das angústias e alegrias que senti ao longo da estrada. Coisa para gente grande e muita, feito Joyce. Matéria de adultice. Junto com a caixa, deixo uma dedicatória com votos de uma velhice adorável, com muitas rugas, pois são as rugas a memória do corpo, e o mais profundo desejo de que perdure o encontro de almas que eu vi oficializar.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Mãos dadas


Se você vier viver comigo, roubarei esse seu sorriso solar e a mania que ele tem de também me fazer sorrir. Exigirei indicações de livros e passarei tardes inteiras lendo com a cabeça recostada na sua barriga, usando e abusando das suas mãos fazedoras de cafunés. Se você vier viver comigo, usurparei o calor dos seus pés durante a noite e só aceitarei dormir se tiver minhas pernas perdidas nas suas. Aproveitarei a oportunidade para brincar de fazer mapas com as pintinhas do seu corpo. Se você vier viver comigo, decretaremos o feriado mundial dos amantes e os dias serão de uma alegria de dar gosto. Passaremos agostos, setembros, outubros, anos inteiros viajando pelos roteiros mais esquisitos. Brigaremos, porque ninguém é de ferro, mas em noites de sábado, cairemos na farra! Em troca, ofereço essa que me tornei. Essa aqui, incompleta, que desistiu de procurar sentido nas coisas e aprendeu demais na desistência. Não ofereço somente alegrias, porque estaria mentindo. Também não farei promessas. Só segura na minha mão, pequeno. Segura na minha mão e vai, quero que leves a menina de cabelos em tranças amarradas com laço de fita e que, de mãos dadas, a gente busque ser feliz.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Entre aspas


Sempre que se entregava, era devolvida. Um caco a mais na coleção de ruínas. Cansada de viver entre aspas, decidiu não mais acreditar nas historinhas de faz-de-conta e esquecer de vez o “foram felizes para sempre” do final. Passou a desconfiar dos “eternamente” que foi encontrando pelo caminho e aproveitou para jogar fora todos os advérbios, uma forma de poupar tempo. De repente, ela, que sempre gostou de vírgulas, quis ser ponto. Nunca mais reticências. Assim mesmo, sem adjuntos ou subordinações. Sujeito simples da oração principal. Até quando conseguir entender o que vai dentro do próprio coração. Até quando for menos suscetível a adjetivos, ainda que nunca.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Pequeno conto do destino II

Quando completou 18 anos, ganhou um pincel e decidiu ser escritora.
Começou a desenhar na pele desejos futuros, fazendo do próprio corpo manifestação da sua arte. Foi se sujando ao longo dos anos.
Nunca recebeu nada pelas letras, mas jamais deixou de escrever.
Escritora semi-nova.
As linhas foram a maneira que ela encontrou de aplacar uma culpa que não sabia ao certo de onde vinha.
Os escritos eram a sina do corpo que ama.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Por mais estrada debaixo dos pés


"Alegria é um bloco de carnaval que não liga se é fevereiro!"


- Adriana Falcão -



Por entender que vivemos com e para o outro, Cris tem a péssima mania de se preocupar com a opinião alheia. Sei que pessoas sensatas e inteligentes normalmente se importam, desde que isso não imponha amarras, nem as impeça de voar. É de ar que ela padece. Dessa vez, eu não vou deixar casas, livros, sapatos ou qualquer coisa dessa ordem, porque Cris precisa é de folgas no meio do amontoado de valores e conceitos éticos e morais que se apertam dentro dela. Ninguém vive impunemente e há que se entender que a gente só tem coragem se tiver medo primeiro. O que determina o salto não é a garantia de segurança da corda, é a ousadia de se abandonar diante do precipício. A minha herança para Cris não é o pulo ou a aventura, mas a coragem. Quero deixar meu invisível par de asas. Menos culpa sobre os ombros e mais estrada debaixo dos pés. Que o medo seja apenas trampolim para saltos cada vez maiores. Que a vida lhe seja leve e que jamais lhe falte a fé necessária para continuar seguindo em frente.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Dos afazeres...


Recife, 28 de julho de 2010

Natália,

Hoje o dia foi corrido. Chega a madrugada e eu ainda aqui, envolvida com os estudos da pós. No meio de uma leitura, lembrei você e resolvi escrever mais essas linhas. Está aí uma coisa que acho importante reafirmar desde já: penso-te todos os dias. Em você e em Júlia, claro. Vocês são as irmãs que eu não tive e as amo com uma força que me escapole, ultrapassa. Escrevo porque soube que você anda meio preguiçosa com os deveres da escola. Sei o quanto são importantes as brincadeiras com as amigas e os joguinhos de computador. Sei também que fingir-se modelo, secretária, bailarina, professora, apresentadora de TV e essas tantas que você inventa durante as tardes é determinante para formar o que você é. As atividades dessa ordem devem ser consideradas sempre de primeira grandeza, mas é importante, também, que entre tantos afazeres você arrume algum tempo para fazer as tarefas de casa. Entenda que as pessoas são nascidas para realizar o que gostam e também o que não gostam e, algumas vezes, uma coisa só acontece por causa da outra. Igual quando só lhe é permitido assistir ao filme no dvd se tiver comido legumes na hora do almoço. É a mesma coisa com as tarefas: se você não as fizer, vai acabar indo mal na escola e se isso acontecer... Melhor nem pensarmos nessa hipótese, não é mesmo? Você deve estar achando que hoje eu desatei a falar asneira, mas, acredite, dentro de alguns anos você vai deixar de gostar da maioria das brincadeiras e pode até sentir falta das tarefinhas que deveria ter feito. A isso, as pessoas chamam crescimento. Estude, então, para quando mudarem as suas prioridades. Só tome cuidado para não ficar adulta a ponto de achar bobas as histórias que são escritas para crianças, pois aí, sim, seria uma grande tolice.

Pense nisso.

Carinho,
Duda


terça-feira, 27 de julho de 2010

Primeiro amor


Conheceram-se de uma maneira atípica: ele procurava um lugar seguro para se esconder dos amigos durante uma brincadeira no recreio quando a encontrou, cabisbaixa, escondendo-se dos outros e dela mesma. A escola, para ela, que se sentia diferente, era uma tortura. As pessoas costumam ser crueis nessa fase da vida. Foi amizade ao primiro esbarrão. E, desde então, ela nunca mais esteve sozinha. Na hora do intervalo, eles se escondiam juntos e brincavam de fazer planos. Ela ficava encantada com a maneira natural com a qual ele tirava sonhos do bolso. O mundo era mais bonito quando ele a ajudava a olhar. Ela usava óculos e, ao contrário dos outros garotos, ele não fazia piada com o fato, até achava graça do jeito diferente que ela tinha de enxergar as coisas. Certa feita, ela apareceu com uma flor vermelha enfeitando o cabelo. Ele achou bonito e fez elogio. E ela passou a usar o enfeite durante semanas, dia após dia. Ele percebeu, mas achou melhor não comentar. Na hora da saída, era sempre uma agonia no coraçãozinho dela, vontade de ficar um pouco mais. As tardes passaram a ser espera pelo dia seguinte. Foi quando numa das despedidas, enquanto esperavam pelos pais na porta da escola, ela tomou coragem e, timidamente, beijou-lhe a face. "Eu também gosto de você", ele disse. E ela foi feliz como nunca.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Declaração Universal da Amizade

Adotada e Proclamada pela República Federativa dos Sonhos



A presente declaração proclama a amizade como o melhor presente que um homem poderá dar ao outro ao longo da vida, devendo ser direito universal e inalienável de todos e tendo como único objetivo promover e difundir o amor entre irmãos.



Artigo I
É direito fundamental do homem livre a construção de laços de amizade e toda pessoa, independentemente de sexo, raça ou credo, deverá ter pelo menos um melhor amigo ao longo da vida.

Parágrafo único: Entre os melhores amigos serão permitidas as maiores intimidades, sendo possível confiar, inclusive, segredos que não se contaria nem para si mesmo.


Artigo II
Apenas critérios da ordem do coração serão aceitos na construção de uma amizade.


Artigo III
Homem algum jamais padecerá de uma mão amiga em momentos de queda.


Artigo IV
A todo e qualquer amigo será dado o dom do resgate.


Artigo V
1. Fica determinado que os amigos deverão, pelo menos uma vez na vida: dormir na casa um do outro, brincar de cabaninha durante a madrugada, participar de promissores projetos de negócios que jamais darão certo.

2. É permitido aos amigos o fracasso.

3. É livre a existência de amigos imaginários e permite-se, inclusive, que um animal seja considerado o melhor amigo do homem.


Artigo VI
Nenhum amigo sumirá arbitrariamente da vida do outro.


Artigo VII
"Eu te amo" será a frase de ordem numa relação de amizade e deverá ser dita sem pudores, em qualquer instante do dia ou da noite, sob quaisquer circunstâncias.


Artigo VIII
É permitido a um amigo morar no abraço do outro sempre que isso for necessário. Quando não for, também.


Artigo IX
É permitido aos amigos brigar e até machucar verbalmente um ao outro, entendendo os instantes de crise como necessários para o fortalecimento da amizade, desde que os laços sejam reatados com nós ainda mais firmes.

Parágrafo único: A pena paga em discussões de longa duração deverá ser de abraços, carinhos e sorrisos.


Artigo X
Um amigo poderá contatar o outro a qualquer instante, independentemente da distância ou entraves logísticos de outra ordem, pessoalmente, através de cartas, telefonemas, torpedos, pombo correio ou sinal de fogo.


*Para Camila, Rafael, Crisly, Aninha, Bruna e Joyce

domingo, 25 de julho de 2010

Noites de terça


Pegou a lâmina e começou a raspar as pernas enquanto blasfemava impossibilidades. Do outro lado, ele observava atônito, quase sem acreditar na intimidade despudorada que se desnudava a sua frente. Quando se deu conta, já não havia mais tempo, os cabelos irretocavelmente lascivos dela sugaram-lhe o pensamento, o hálito, a fome. Lobotomia. Mas sexo, ela alertara, só em noites de terça, porque devota fiel do improvável. Desejo santo. Amor pagão. Eroticamente exposta, seu maior prazer era ter outros corpos entranhados ao seu, tão esquerdo, tão líquido, tão impuro. Vivia pelo seu lado mais intenso, o avesso. Mas era de pudores a sua vida secreta: quanto mais expunha, mais escondia.

sábado, 24 de julho de 2010

Parceria


"Queríamos tanto salvar o outro.
Amizade é matéria de salvação."


- Clarice Lispector -


Rafael não usa sapatos. Quando o lugar pede um pouco mais de requinte, vai de tênis. De preferência o mais sujo, aquele rasgado e com a sola gasta. Sempre a mesma marca e o mesmo modelo, só muda a cor. Sei que usar apenas o que lhe agrada foi o jeito que encontrou de ficar completo. Ele, que luta o tempo todo para não ser uma pessoa desinteirada. Questão de princípios. Deixo para Rafael o meu all star de couro branco e o tanto de caminho que a gente já percorreu junto. Usando aquele tênis, vivi nossos momentos mais bonitos, compostos tão somente de desapertos e coisas que fluem. Quis deixar esse passado colorido, construído diariamente com risadas, leituras e cervejas na mesa do bar, por acreditar no poder da lembrança. Mas percebi que ainda era pouco, pois verdadeiramente desafiador é presentear o outro com a incerteza do que virá. Também fica para ele, então, a ansiedade deliciosa que bagunça o estômago da gente nos dias de véspera. Porque eu posso não saber o que acontecerá no instante seguinte, mas sei que ele estará comigo. Ainda que eu não seja mais essa menina cheia de sonhos. Ainda que ele não seja mais aquele menino repleto de sensibilidades. Ainda que nada mais reste a ser deixado como herança.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Pequeno conto do destino

Vinte anos de idade vividos sob o sol do interminável verão recifense.
Trabalhava desde menina. A mesma rotina maçante, dia após dia.
Estendia roupa no varal quando a trupe passou: curiós cantando e dançando por toda parte.
Tinha palhaçada, sim senhor! Tinha marmelada, sim senhor!
Balões co-lo-ri-dos em tão variados tons que ela chegou a ficar tonta.
Largou a trouxa e fugiu com o circo.
Mas continuou a viver na corda bamba
.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Oração pelos dias que virão


Que eu possa agradecer a todo aquele que me ajudar ao longo da vida, mesmo que ele não saiba, pois é a gratidão um dos maiores sentimentos do homem. Que eu identifique a importância da tristeza e a entenda necessária para o reconhecimento da felicidade. Que me seja dada paciência diante dos grandes desafios, porque as coisas mais preciosas da vida são realizadas com esmero e determinação, sabendo que o pássaro carrega no bico, um a um, os gravetos que usará para construir o seu ninho. Que eu tenha resignação para entender e aceitar as coisas que não podem ser modificadas e força, para desbravar os labirintos de mim. Que eu entenda que os amores morrem e, ainda assim, não tenha medo de me entregar com o meu desejo inteiro, na certeza de que depois da morte sempre há o renascimento. Que não me seja permitido esquecer que toda a vida é perecível e que eu saiba aproveitar as eternidades contidas nos momentos mais importantes, que são também os mais simples. Que eu consiga alcançar estrelas e tenha a sabedoria de guardá-las, para as situações de escuridão absoluta. Que quando nada mais parecer dar certo e a esperança tiver ficado para trás, corroída pelas traças na gaveta do esquecimento, eu invente. Que a raiva não me cegue. Que o medo não me trave. Que a liberdade não me assuste. E que nunca, jamais, em tempo algum, eu deixe de acreditar. Amém.



* Para Júlia e Natália.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Menina-música


A radiola do avô é tudo de que uma pessoa precisa para ser feliz, ela sabia. Era feita de giros, ritmos e tons. A vida inteira presa numa nota, sol. Gostava de fazer de conta que o tênis velho era sapatilha de bailarina e saía rodopiando pela sala, sob o olhar atento dela mesma, que era a mais cruel de todas as críticas. Repetia milhares de vezes a mesma coreografia até que estivesse satisfeita, o que raramente acontecia. A repetição, na verdade, foi o subterfúgio que encontrara para nunca parar. Carregava consigo uma certeza: é a música que desperta o lado bom das pessoas. Como se nada mais fosse capaz de fazer, dançava, desbravando o mundo com a ponta dos pés. Poesia feita com o corpo. Ela cheirava a música. Deve ser feitiço isso de ter a melodia como um pedaço da pele.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Fotossíntese



Seis da tarde. Em momentos de tristeza, ela segue para a estação de trem. Gosta de acompanhar os passos das gentes que vão e voltam. Quando a dor é muito grande, senta-se no chão, recosta-se a parede e dobra os joelhos. Poderia ficar durante dias naquela posição sem que ninguém a notasse. Acontece nas grandes cidades. Às vezes, junta-se à multidão e embarca num trem, ou dois, ou três. Depende do tamanho do abismo que carrega. Perder-se no aglomerado de pessoas foi a melhor forma que encontrou para tornar-se invisível. Um amontoado de corpos a bordo do carregador de vidas. Frenesi e lassidão, barulhos e silêncios. É assim mesmo: reunião de paradoxos. Embarca no último vagão, em direção à estação final, onde passa a madrugada inteira em pé na beirada da plataforma. Extrapola os limites da linha amarela. Respira fundo tentando fazer o coração desaprender o caminho da dor. Quando não mais resiste, chora. O corpo fica completamente úmido e ao redor dela vai se formando uma poça de água salgada. Mar que arrebenta. Ela observa tudo clandestinamente, chega a desconfiar que esteja chorando que é por trás de seus olhos castanhos que se forma a cratera profunda, mas não tem coragem de checar. Tem mania de criar personagens para disfarçar a própria tristeza. Amanhece e, aos poucos, os raios de sol secam a poça, feito orvalho sumindo da folha da árvore. Instantes de luz penetram a pele e começam a produzir desapertos. Indícios de salvação. Quase volta a ser o que era. As primeiras pessoas que chegam à estação, observam atônitas as transformações do corpo fotossintético. Entreolham-se sem entender nada, mas sabem da importância de respeitar a grandeza daquela fragilidade inquebrantável. O primeiro trem chega e ela já não está mais no mesmo lugar. Dá dois passos atrás e volta para casa. Caminhando.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Meninice


"Me cansei de lero-lero,
dá lincença, mas eu vou sair do sério!"



- Rita Lee e Roberto de Carvalho -




Se eu tivesse que desejar alguma coisa para as próximas gerações, desejaria o brilho dos olhos de uma criança ao se perceber pela primeira vez diante do mar, pois é a inocência que faz crescer os jardins de dentro da gente. E amor, eu sempre soube, acontece quando o adulto deixa sorrir a criança que carrega dentro. Aninha cresceu, mas jamais deixou de ser menina. Ela decidiu não desistir dos sonhos, do encanto, dos sorrisos. É daquelas que saem do circo acreditando no poder da magia, mesmo sabendo-a truque. E é exatamente aí que mora a sua meninice. Aninha não é a criança, nem o mar, ela é o espanto. Guardei para ela o alumbramento dos banhos de chuva em noite de verão, das brincadeiras de roda e das manchas de azeitona roxa na barra da saia. A minha eterna capacidade de encantamento e toda a inocência que, com algum esforço, eu cultivei durante a vida. A infância é um bem precioso demais e ela é a pessoa certa para cuidar deste milagre.

domingo, 18 de julho de 2010

Dor na corda bamba


Buscava notícias de tempos distantes resgatando lembranças no passado fazedor de memórias. A cada novidade que recebia, um acontecimento pior. Amiudou-se. E deu de engolir lágrimas, determinada que estava em parecer firme. Impedia as lágrimas de caírem por determinação, não por falta de vontade de chorar. Amparada numa dor concreta, que a embalava e sustentava. Do corpo, só restaram os átrios e os espaços vazios por onde passava o ar. A vida ficou suspensa num fôlego. Dor na corda bamba. Suspirou três vezes, pelo pai, pelo filho e pelo espírito santo. Pensou em desistir, mas decidiu seguir adiante com o músculo que sangra, pelos dias que viriam.

sábado, 17 de julho de 2010

Sobre o tempo...


Recife, 17 de julho de 2010

Natália,

Já passam das duas da manhã e, mais uma vez, a insônia não me deixa dormir. Faz alguns dias, veio morar dentro de mim uma agonia transbordante e sempre que isso acontece, a solução que eu encontro é pensar, sentir e escrever. Hoje, endereço a você as minhas linhas. Estava agora mesmo lembrando dos meus tempos de menina, das brincadeiras no quintal de casa e do cheiro da comida da nossa avó. Lembrei-me também da sua primeira infância e de como você está ficando uma menina cada vez mais esperta e inteligente. E fiquei triste ao perceber o quanto eu posso acompanhar pouco, já que desde sempre você foi morar num estado diferente do meu. Bateu uma saudade anestesiante, dessas que paralisam a gente só de lembrar, sabe como é? Fiquei toda eu refém de um tempo pretérito. Receio que tudo isso esteja ficando complicado demais para você, minha criança. Mas, receio também não poder explicar agora. Existe algo, no entanto, que você precisa aprender desde já: o tempo é precioso, Natália. Todo o tempo, o que passou e não volta mais, o que virá e a gente não sabe como vai ser e, principalmente, esse de agora, que a gente vive e, muitas vezes, não se dá conta. O tempo não é feito tarefa de casa, que a gente erra, apaga e começa de novo. Ele não volta. Aprende, pois, a respeitá-lo. É que nem o brigadeiro que a gente faz para assistir ao filme da sessão da tarde: se demorar muito no fogo, queima e faz bolinhas no fundo da panela. Aí, então, só fazendo outro. Está aí uma lição para a vida inteira: não é possível fazer outro tempo, sempre restarão alguns gostos amargos pelo caminho. Mas não se preocupe com isso, algumas vezes a amargura, eu já aprendi, é inevitável. Tente, apenas, não extrapolar na dose. O tempo é, também, um santo milagroso, capaz de afastar esperanças falidas e sonhos frustrados. É tão sabido, esse tal de tempo, que cura as nossas feridas, mas, não nos permite esquecê-las, porque é lembrando a tristeza que a gente reconhece a felicidade. Porém, isso é coisa que você vai aprender melhor quando estiver mais velha, com o tempo. Agora, preciso tentar dormir. Amanhã é novo dia e espero acordar com menos agonia dentro.

Amor,

Duda

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Uma boca de sorrir poemas


Ele tinha um dom inebriante de parir desejos. Sem rumo, seguia tragando olhares. Sua principal direção era o descaminho. Artista das letras, vivia do ofício de esculpir palavras. Pintava, cortava, colava, separava, refazia e ia construindo frases inteiras. As palavras saíam feito música de uma boca de sorrir poemas e viravam flor, que ele ia plantando do lado de dentro das moças bonitas que encontrava ao longo do trajeto. Andava pelo mundo a espalhar querências.

E o amor, quando é de verdade?


Zé: Vortô pra ficá, né?
Maria: Não, acho que minha sina é sempre caminhá.
Zé: Tu carece é de criar raíz, menina.
Maria: Num fala assim, Zé, eu sinto que andei, andei, andei e num cheguei a lurgar nenhum. Sinto que um tanto de coisa eu perdi e um tanto de coisa eu num consegui achá... Vivê é assim mermo, Zé? Essa coisa doida que muda sempre? A separação de quem a gente quer? Andança sem pará, Zé? Parece tudo sonho. Vivê é isso, Zé? E o amô, Zé, quando é de verdade? E felicidade, Zé, quando é de verdade?
Zé: Ói, a felicidade é o contrário do amô, né? A felicidade...
Maria: E na vida, Zé, o que vem depois da morte?
Zé: Num sei. A gente só sabe perguntá, num sabe responder não
Maria: Acho que meu destino é sempre fazer o caminho de vorta. Adeus, Zé!
Zé: Mas será pussivi, menina, que nossa sina seja sempre se dispidi?
Maria: É não, Zé! Nossa sina é sempre se incontrá!



[da série Hoje é dia de Maria]

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Ela veio para ser pássaro



"Mas você tem cento e vinte borboletas
pousadas na sua tiara.
Você pode voar a qualquer momento!"

- Rita Apoena -

O único cativeiro que ela tolera é a liberdade. Das habilidades que conhece, a que sabe melhor é voar. Quando nasceu, todos sabiam: Ana veio para ser pássaro na vida. É sina. Há que se respeitar. Há que se entender. Vive pela busca incessante de um amor que ela sabe, morrerá. Porque nada nessa vida é permanente, nem os amores. E é justamente por acreditar num amor que nasce e morre nele mesmo, que ela voa alto e vive muitos e muitos amores ao longo da vida, sempre com a intensidade do que é eterno enquanto dura. Deixo para Ana a mais preciosa de todas as minhas propriedades: uma casa nas nuvens, muito bem localizada naquele momento do dia em que o céu está mais azul, mais límpido, mais brilhante, que é para ela sair voando por aí, enchendo o mundo de bonitezas. Tendo asas, um pedaço de céu é tudo que ela precisa para voar e continuar buscando.

Uma lágrima e uma reza


Ela era dona de poucas palavras e falava sempre com o timbre baixo, como se tivesse vergonha. Tinha intensos olhos castanhos colocados numa face branca extremamente expressiva. Os cabelos pretos soltos eram o único adorno do rosto sem enfeite. Andava de cabeça baixa, tendo o cuidado de ser gentil e educada, com a coluna curva sendo sustentada por um corpo magro. Agia desviando a fala, curvando o olhar e disfarçando a existência. Ensimesmada, vestia-se com recato, usando saias que passavam da altura do joelho, mas tinha a nudez estampada nos olhos. Ao longo da vida, aprendeu a não ter pressa. Com dinheiro pouco e leitura nenhuma, vivia mesmo era de fé. Nas noites de tristeza, rezava olhando para a Lua, com esperança de que suas súplicas chegassem ao santo, o Jorge. Fazia isso num ritmo compassado, lento. Uma lágrima e uma reza. Uma reza e uma lágrima.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Ela já entendeu tudo


Faz alguns dias, estávamos nos balançando na rede e conversando sobre as coisas da vida quando, muito seriamente, Natália revelou-me o seu grande sonho: morar na Livraria Cultura. Achei aquele um sonho deveras grandioso para uma menininha de oito anos, mas, antes que eu pudesse fazer qualquer comentário a respeito, ela completou, com um pedido: me conta uma história, como nos velhos tempos? Achei graça. E comecei a inventar uma história, em nome dos velhos tempos da vida de uma senhora de oito anos de idade. Natália é saída de um conto-de-fadas. É dona de um sorriso brilhante e de imensos olhos verdes com fome de mundo, mas tem estrabismo e usa óculos, porque nada nela é comum. Sempre que vai à Livraria (o passeio que ela mais gosta de fazer), só fica satisfeita quando permanece por tempo suficiente para ler pelo menos um livro. Não se importa de sair da loja sem levar nada, desde que tenha lido alguma coisa, viajado para algum lugar, conhecido um novo mundo. É incrível, mas aos 8 anos, ela já entendeu tudo. Por isso, deixo como herança para Natália os meus livros, que são o maior de todos os meus tesouros. Deixo também todos os mundos que estão contidos em cada página, o colorido das linhas, a alegria das letras e um coração rechonchudo de bem-querer. Agora, que ela acaba de chegar aos 8, acho que já pode guardar esta relíquia. Ficam também os sonhos mais bonitos, as manhãs mais inteiras e as nuvens mais doces. Toda sorte de encantos e surrealismos, por fim. Coisas que, certamente, ela será capaz de compreender, menina que é.

Do que resta

Depois de tanta chuva, faz sol no Recife. Os dias mais solares fazem as coisas melhorarem aqui dentro também. Aos poucos, eu vou conhecendo os meus abismos e aprendendo a lidar melhor com as minhas próprias ruínas. Toda aquela angústia paralisante já não me sufoca mais. É verdade que ainda não aprendi direito a lidar com a minha própria morte. Mas, sei que isso leva tempo e não tenho pressa. Ontem, tive uma tarde inteira regada a filmes, ao lado de uma boa companhia sagitariana. Um deles, de nome muito peculiar, deixou-me deveras intrigada: "O filho sem mãe". Eu, que só tive mãe a vida inteira, tenho dificuldade até para imaginar como seria isso. Penso que um filho sem mãe é feito uma criança impossibilitada de correr diante de um descampado enorme, verde, em dia de céu azul. É assim que me sinto quando penso que posso, um dia, perder a minha mãe: uma menina de pernas assassinadas. Dá uma dor de tirar o fôlego, maior que a morte. O que mais restará a perder quando eu, que só tenho mãe nessa vida, ficar sem a minha?

terça-feira, 13 de julho de 2010

Inventário de mim mesma



Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se não fosse nada.




- Caio Fernando Abreu -